sábado, 16 de outubro de 2010

Vamos Combater a Credulidade (8a) Dos das Correlações

Retomo a abordagem feita aqui sobre a nossa postura no debate, recorendo de novo aos textos do professor Elísio Macamo com o título acima.



Vamos combater a credulidade (8a) Dos das correlações
E. Macamo

Vou ter que discutir o tema das correlações em três textos seguidos. Acho importante fazer isto porque a problemática que vou tratar tem estado, do lado académico, no centro de como abordamos um bom número de fenómenos sociais no nosso país. O tipo de argumento que me interessa, e que pode fomentar a credulidade, consiste em chegar a conclusões a partir da constatação de correlações e partir dessas correlações para uma causa. No fundo, não há nada de errado neste procedimento e, aliás, a responsabilidade pelas conclusões que são tiradas não pertence aos autores, mas sim a nós os leitores que preferimos dá-las por adquirido.


Existe, felizmente, um trabalho científico da autoria do Professor Carlos Serra do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane com o título Cólera e Catarse, realizado em 2002 na província de Nampula, que, em minha opinião, usa este tipo de argumento. Talvez seja bom dizer de imediato que a minha análise não põe em causa a autoridade científica do autor. Faço este reparo porque quando publiquei este texto pela primeira vez na internet houve reacções bastante agressivas de gente que ignorou os reparos metodológicos que fiz e preferiu questionar as minhas motivações. Que a crítica por pares faz parte da vida académica passou completamente despercebido a essas pessoas. Sendo o Professor Serra o sociólogo mais produtivo ao nível da pesquisa no país e, ainda mais, debruçando-se sobre fenómenos de grande interesse público – e politicamente relevantes – é importante não só prestar atenção ao que ele diz, mas proporcionar aos interessados instrumentos com os quais eles possam digerir essa produção sem caírem na credulidade como alguns têm, infelizmente, feito.


Vou começar por expôr a obra de forma breve e, no artigo a seguir a este, vou tecer comentários à sua volta. O estudo debruça-se sobre os ataques contra agentes de saúde em Nampula perpretados por populares que acreditavam que estes eram quem causava a cólera. Segundo os autores – a pesquisa foi feita por uma equipa de investigadores – a crença popular (de que a cólera é introduzida pelo governo através do cloro) não é algo irracional como alguns de nós nos sentiríamos inclinados a crer. Ela documenta uma crítica popular ao Estado que não é dialogante, é ineficaz na solução dos problemas do povo, é representado por funcionários alheios aos anseios do povo e tudo isto num ambiente de privações. Na verdade, segundo o estudo a crença pode ser irracional do ponto de vista da explicação científica das causas da cólera, mas perfeitamente coerente com aquilo que os autores do estudo chamam de “consciência de privação”.


De certa forma, portanto, o estudo diz-nos que esta crença é o resultado de um Estado, digamos, problemático contra o qual os populares reagem. Do ponto de vista formal, a estrutura do argumento é simples e consiste de uma premissa apenas. A premissa diz que existe uma correlação entre A (natureza do Estado) e B (crença popular). A conclusão é de que A é a causa de B. A hipótese formulada para o estudo gira em torno deste argumento: “A crença de que a cólera é introduzida pelo governo em Nampula através do cloro (fenómeno) é um indicador de insegurança popular (nível 1) ampliada pela tensão política (nível 2).”. Já na preparação da problemática os investigadores haviam anunciado a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. O estudo confirma o nível 1 (a crença como indicador de insegurança popular), mas não encontra sustento para o nível 2 (a crença é ampliada pela tensão política).


Para este efeito, os investigadores entrevistaram várias pessoas em alguns distritos da província de Nampula. Essas entrevistas produziram depoimentos muito interessantes que, na interpretação dos investigadores, revelam um mal-estar popular em relação ao papel do Estado. Os dados obtidos desta maneira em todos os distritos inquiridos convergem na apreciação negativa do papel do Estado e de algumas ONGs, por um lado, e na reacção que consiste em atacar os agentes do Estado e das ONGs como vectores do mal. O estudo critica duramente aqueles entrevistados, na sua maioria representantes do Estado, que atribuem a acção popular ao analfabetismo e à ignorância. Ele tenta mostrar que a crença não tem nada de irracional, mas é uma reacção à indiferença e oportunismo dos agentes do Estado. Os leitores que acompanham a produção do autor principal vão notar que se trata, na essência, do mesmo argumento que é utilizado para explicar os linchamentos e, porque não, distúrbios como os de 5 de fevereiro e 1 de setembro: falta de confiança no Estado, logo, reacções populares bizarras encontram a sua lógica no comentário crítico que tecem sobre esse Estado. Amanhã vou prosseguir com uma leitura crítica.

Vamos combater a credulidade (8b) Dos das correlações
E. Macamo


Como ler criticamente um estudo tão bem feito como este? Ainda há espaço para distância crítica? A correlação entre apatia do Estado e crença no mito da cólera é, nos dados apresentados pelo estudo, tão elevada que não pode haver outra maneira de interpretar os resultados. Existem basicamente três estratégias para interpelar criticamente este tipo de argumento. Todas elas consistem em perguntas. A primeira pergunta é a seguinte: será que existe mesmo uma correlação entre A e B? A segunda não menos importante é a seguinte: haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência? Finalmente, a terceira pergunta é: é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B? Esta última pergunta não é inocente. Na verdade, há muitas correlações que fazemos no quotidiano e que se explicam, muitas vezes facilmente, com recurso a uma terceira variável. Por exemplo, podíamos associar a quantidade de estragos num incêndio ao número de bombeiros que o debelaram e concluirmos que os bombeiros são a causa do estrago. Contudo, pode ser que o tamanho do incêndio tivesse exigido mais bombeiros pelo que o próprio tamanho é que seria responsável pelos estragos. Por conseguinte, a nossa distância crítica tem que nos conduzir a eliminar outros factores que possam estar por detrás da correlação imputada. Pensar criticamente significaria, neste caso, justamente eliminar esses factores.


Colocadas as coisas desta maneira, podemos começar a ver alguns problemas com o estudo. Em relação à primeira pergunta (será que existe mesmo uma correlação entre A e B?) podemos, socorrendo-nos dos dados facultados pelo estudo, dizer que de facto existe uma correlação entre a apatia do Estado e a crença popular. Os vários depoimentos são prova disso. Abro aqui, porém, um parêntesis para dizer que seria interessante perguntar também se em todo o lado onde se manifesta este tipo de crença o Estado é visto como sendo apático ou, dito de outra maneira, porque sendo o nosso Estado geralmente apático (suponhamos) não se verificam estas crenças noutros pontos do país com a intensidade que elas têm em Nampula? Estas perguntas são particularmente pertinentes na consideração da terceira pergunta mais adiante.
A resposta à nossa segunda pergunta (haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência?) é menos linear. Há um investimento normativo muito forte por parte dos investigadores para estabelecer a responsabilidade do Estado. A (ir)responsabilidade do Estado é a resposta padrão dos estudos feitos pela Oficina de Sociologia. Porque há linchamentos? Porque há privatização da justiça face à inoperância do Estado. Porque as pessoas frequentam as igrejas pentecostais? Porque estão a reagir à ausência do Estado cuja responsabilidade é escondida pelo discurso da culpa pessoal das preces feitas nessas igrejas. O que quero dizer com isto é que o estudo foi feito com a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. Conhecidas que são as “insuficiências” do nosso Estado, era concebível que o discurso popular fosse diferente do apurado? Não me parece. Em certa medida, portanto, o estudo confirmou a sua própria profecia.


Contudo, há aqui e ali elementos interessantes que vão sobressaíndo dos depoimentos populares. Por exemplo, fala-se de conflitos entre duas interpretações do Islão; fala-se de conflitos entre os jovens e os mais velhos; fala-se de conflitos entre mulheres e homens, embora (tendo em conta o facto de se tratar de sociedades matrilineares) me pareça haver exagero na apresentação da novidade do protagonismo feminino. Estes conflitos são secundarizados no estudo e não merecem a atenção prolongada dos investigadores. O que me parece uma pena. Na verdade, teria sido interessante cruzar estes conflitos com o perfil social daqueles que se envolveram no ataque aos agentes da autoridade e procurar saber se aí também há correlações a fazer. É verdade que do ponto de vista da pesquisa seria difícil encontrar pessoas que tivessem a coragem de dizer que cometeram delitos, mas mesmo assim a partir dos depoimentos teria sido possível estabelecer correlações entre estes outros conflitos e as crenças. Os autores não fizeram nada disso e esta omissão parece-me constituir o calcanhar de aquiles de um estudo que, de outro modo, é um excelente exemplo da pesquisa social empírica. A responsabilidade, porém, não está nos autores, mas naqueles que vão ler o estudo sem procurar interpelar as suas conclusões para além do que foi dito.


À terceira pergunta (é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B?), para voltarmos à vaca fria, podemos responder afirmativamente. Podíamos dizer que a crença em si é manifestação de ignorância ou de estruturas tradicionais de pensamento, mas que isso em si não é fundamental. O que é fundamental é explicar a reacção violenta na sequência da crença. Aí podíamos dizer que quer a reacção violenta, quer a apatia do Estado são fenómenos que são explicados pelo desmoronamento das estruturas de autoridade naquela região de modo que a nossa atenção não se deve cingir apenas às críticas ao Estado, mas às transformações que ocorrem naqueles meios. E, de facto, os vários outros conflitos mencionados, mas não aprofundados, revelam que a questão da autoridade é fulcral. É interessante notar que as pessoas, no fundo, sabem que o cloro não causa a cólera. Desconfiam das intenções dos representantes do Estado, mas esta desconfiança não explica a sua reacção violenta. No artigo a seguir fecho esta mini-série de três artigos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Uma Medida de Grande Alcance

Somos muitas vezes críticos quando o nosso Governo tarda em tomar determinadas medidas ou quando toma outras cujo alcance e/ou oportunidade se questiona, porém nos omitimos de emular boas decisões que são igualmente tomadas. Fiquei agradavelmente surpreendido por uma declaração do Ministério da Justiça, segundo a qual o cidadão não precisa se dirigir a um cartório notarial para proceder a autenticação de fotocópias.

Ao que percebi, tal declaração funda-se no disposto no art. 56 do Decreto n.º 30/2001, de 15 de Outubro que preconiza que “A conferência de fotocópias pode ser feita gratuitamente nos serviços da Administração Pública onde devem ser entregues, desde que seja exibido simultaneamente o original do documento. O funcionario que confirmar a autenticidade da fotocópia deve declarar por escrito que confere com o original, assinar e datar.”

É uma medida que se enquadra no âmbito da reforma do sector público e devia ter sido implementada ainda na primeira fase deste processo mas, só agora é que é publicamente divulgada. É possível que a equipe do Ministério da Justiça ainda estivesse a fazer contas das taxas que deixaria de obter por força de tão “radical” imperativo legal, mas vale mais tarde do que nunca.

Infelizmente, os “vivas” dados a saudar a medida foram, até onde pude acompanhar, unicamente no sentido da redução das filas (vulgo “bichas”) nos notários, principalmente na época das matrículas. Mas, mais do que a simples questão das filas, há um conjunto de benefícios que esta medida encerra.

É um facto que a Administração Pública deixa de arrecadar 5/7 meticais por cada autenticação mas o cidadão a quem esta Administração serve, poupa nos seus já parcos recursos mais do que 5/7 meticais: poupa igualmente o valor do chapa (lembremos que os cartórios notariais, pelo menos em Maputo e em quase todas principais cidades localizam-se na zona urbana/cimento, sendo que a população reside fora desses centros), poupa em algo cujo valor é inestimável que é o tempo e pode capitalizar isso para outras actividades mais produtivas e rentáveis.

Com isto ganha o Estado (considerado na sua vertente territorial, do poder político e da população indispensável no conceito) a partir da decisão administrativa de “libertar” o povo da “chatice” das filas e do gasto do dinheiro que passa a ser poupado para outros fins (lembremos que os motins de 1 e 2 de Setembro, foram igualmente justificados pela subida de pão em 1 metical, valor excessivamente alto para o mais comum dos cidadãos moçambicanos).

Ganha o Ministério da Justiça que terá os seus funcionários libertos para outros actos notariais que, provavelmente, sejam mais importantes e com maior possibilidade de geração de receitas do que as conferências de fotocópias.

É enorme o alcance desta medida. Se calhar este meu post não alcance tal na sua plenitude mas, se calhar também, podemos iniciar aqui um processo da construção do alcance desta medida.

É evidente que ao Ministério da Justiça continua o desafio de oferecer mais e melhores serviços públicos lá onde a população reside e deles precisa. Esta medida pode até contribuir para minorar o crónico problema de transporte. Imaginemos um residente no Zimpeto que precisa dos serviços de um notário: o mais próximo situa-se no Alto-Maé. Tem que apanhar “chapa” e esperar a boa vontade do chapeiro para não encurtar a rota e… enfim. Creio que caminhamos para lá. Ainda bem que o Vice da Justiça espreita os nossos blogs e é nosso companheiro de batalhas várias.