domingo, 11 de setembro de 2011

Coincidências

A Líbia tem estado no centro das atenções nos últimos dias. Não há noticiário que passe sem uma referência à Líbia, incluindo a brincadeira de mau gosto dos atletas líbios que quiseram fazer da cerimónia de abertura dos X Jogos Africanos um momento de manifestação política.
Mas ando cansado do assunto Líbia, como já me tinha cansado a caça a Bin Laden e, no geral, das peripécias da guerra “contra o terrorismo.” Ando cansado da hipocrisia que gira a volta disto tudo, das historietas que nos contam e nas quais, muitas vezes, acriticamente caímos e tratamos de não só de disseminar, mas de aderir e darmos o corpo ao manifesto pela odisseia libertadora trazida pela NATO.
Eram anjos Saddam, Kadafi e/ou Bin Laden? Não, não eram como nunca foram os “democratas” Bush, Clinton ou, agora, Obama, Cameron, Sarcozy e seus sequazes. Não nos esqueçamos que no Iraque se agitou a bandeira da liberdade, do fim de uma ditadura que assentou e se fixou com o apoio dos mesmos que, quando Saddam já não lhes servia, o derrubaram escangalhando o país morrendo provavelmente mais iraquianos do que todos os que Saddam possa, em algum momento, ter patrocinado a morte. E continuam a morrer.
Mas o que tem Saddam Hussein, Bin Laden e mesmo Khadaffi de comum? Para além do epíteto de ditadores e das ligações ao terrorismo que se vende e se compra deles ou mesmo da caçada que lhes foi imposta, há semelhanças outras que se acham destes senhores.
Comecemos por Saddam Hussein. A Revolução Islâmica de 1979 trouxe muitos desafios/problemas a Saddam e aos EUA. A estes últimos estava em causa a sua posição geopolítica na região. A Saddam preocupava a força e o poder que os Xiitas representavam tanto que não hesitou na repressão com o apoio americano.
Como se pode ler num texto intitulado “A Ingratidão Norte-Americana a Saddam Hussein” (pode ser lido em http://www.charlespennaforte.pro.br/saddamhussein.html), apesar dos assassinatos contra os xiitas iraquianos, o governo Reagan nos anos 80, não viu nenhum "motivo" para condenar o regime de Saddam Hussein por suas barbáries contra os seres humanos. Afinal, ele era uma "boa pessoa" e um "grande líder", enfim: um DEMOCRATA. Reagan e Saddam tornaram-se grandes parceiros. Parceria regada a muito dinheiro e armas, principalmente químicas que foram utilizadas contra curdos e os iranianos. Aliás, um jornalista do Financial Times chamado Alan Friedman já havia divulgado a história de que George Bush pai e o secretário de defesa de então haviam concedido milhões de dólares para capacitar militarmente o Iraque incluindo com as armas que fundamentaram a invasão àquele país.
Foi assim de Reagan a Bush filho, num ciclo que ainda tem a guerra do golfo de 1990 que terminou com Saddam se mantendo no poder, de certeza, servindo os interesses americanos. Saddam acabou morto pendurado numa corda patrocinada pelos seus ex aliados. Bush filho acabava com o “terrorista” potenciado pelo pai e seus antecessores.
Bin Laden morreu. Os americanos festejaram. Uff devem ter suspirado. Era o fim de um problema criado por eles mesmos. Como escreve Antonio Martins em outraspalavras.net de 2 de Junho de 2011, a CIA que coordenou a liquidação de Laden está estreitamente associada ao seu surgimento. É que, segundo a mesma fonte, “tanto o homem de barbas longas e olhar calmo quanto a própria Al Qaeda foram conscientemente criados pelos Estados Unidos, no contexto da disputa contra a União Soviética, na guerra fria.” Bin Laden expirou o prazo, tornou-se num monstro que devia ser caçado e morto como veio a sê-lo há bem pouco tempo, com os detalhes conhecidos.
As agências de informação internacional agora noticiam que serviços de inteligência dos Estados Unidos e da Inglaterra cooperaram com o regime de Muammar Kadafi na Líbia, cooperação atestada por documentos encontrados pela organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) em edifícios dos serviços secretos líbios em Tripoli. Portanto, este “ditador” sanguinário que não hesita em matar o seu próprio povo e agarrado ao poder já foi tão útil aos que hoje capitaneiam a caça ao homem para o liquidar a tal ponto de Abdulhakim Belhaj, comandante das forças militares da rebelião líbia, ter exigido um pedido de desculpas formal a Washington e Londres por ter sido transferido para a Líbia “numa operação ilegal” em 2004, em que afirma ter acabado por ter sido torturado numa prisão de Tripoli segundo afirmam diversas agências de notícias.
Não sou optimista. Kadafi acabará como os referidos acima ou como outros líderes mundiais que caíram às mãos de grupelhos patrocinados pelos mesmos em África, América Latina e noutros lugares que, quando deixaram de servir também viraram diabos.
É isso que tem em comum estes senhores. Em algum momento foram meninos bonitos úteis aos que os caçam patrocinando liberdade em contraposição à ditadura que se atribui a alguns ou a bem de um mundo mais seguro pela eliminação de terrorista que formaram e potenciaram. E o pior é a tendência de nos fazerem crer num bom samaritanismo sem limites.
Pior ainda são os vivas que ouvimos internamente de gente que devia ter como missão formar e informar com responsabilidade até com recurso a exemplos do Iraque arrasado em busca de armas nunca encontradas e que está numa anarquia que só não é a pior porque existe o Afeganistão e a Somália outras paragens dos que patrocinam a queda de Kadafi. Será a Líbia diferente do Iraque, Afeganistão, Somália depois da queda do ditador? O que é que define um ditador? Serão as várias tribos capazes de se unir em torno de um objectivo comum de tornar a líbia tão próspera como era nos últimos 40 anos? Esperemos para ver, ao mesmo tempo que deveríamos rever os nossos conceitos de ditador etc.
Disto tudo deveríamos tirar ilações. Os americanos são HOJE nossos parceiros de desenvolvimento. Temos usufruído de largas somas dos contribuintes americanos para fazer face aos desafios do nosso desenvolvimento. Veja-se o apoio no âmbito do Milennium Challange Account. Para além disso, anunciam-se largos investimentos na área petrolífera através de empresas americanas no sector petrolífero. Portanto, apesar da actuação como “comissário político” por parte de um diplomata americano recentemente retirado de cena, não há nada que prenuncie que, de momento, não sejamos brothers dos americanos. O que não sei é até quando. O que não sei é que pretexto poderá ser usado para, de merecedores de ajuda para o desenvolvimento, de merecedores de elogios até da parte do presidente americano, passarmos à situação dos que descrevi atrás.
Já diz a sabedoria popular: confiar é bom, desconfiar é melhor. Para além do país como um todo, os partidos políticos e alguns políticos em particular cuja acção parece escudada e salvaguardada pelos americanos deveriam pôr-se a pau e desconfiar. Fala-se que Savimbi, um ex-aliado americano, foi caçado com auxílio americano. Se o fizeram em todos esses lados, porque não o fariam com um qualquer líder político nacional com quem se aliaram ontem ou hoje?