quinta-feira, 2 de abril de 2009

Um Golo Para Fintar o Destino

A propósito da minha postagem anterior, o PC Mapengo chamou a minha atenção para o texto da sua lavra publicado no Jornal o "Escorpião" desta semana. Achei interessante trazê-lo aqui para beneficiar do nosso escrutíneo intelectual.

Importância social do desporto num período em que se exige mais escolas

Um Golo Para Fintar o Destino

Por Policarpo Mapengo

Partindo da escola de jogadores de T-3, procuramos analisar a importância social do desporto. O aparecimento do profissionalismo no desporto provocou uma ruptura com o tradicional. Do praticante passou-se a exigir muito mais que talento. Exige-se que o desporto passe a ser praticado dentro de uma determinada disciplina. É essa disciplina, a principal responsável pela maneira de agir e comportamento que vai fabricar um homem necessário a determinadas funções. Isto é feito com disciplina e vigilância, instrumentos fundamentais na civilização e muito usados na introdução de normas que amenizaram a violência controlando o impulso, sublimando desejos e criando condutas em conformidade com as regras sociais.

Até parecia um jogo em que a comunidade tinha de escolher entre mais salas para os seus filhos e um campo de futebol.

A direcção da educação não fez a pergunta e avançou para as obras destruindo o campo. Os residentes do bairro T-3 não responderam em palavras, assaltaram a escola. Os mais velhos pegaram as ancas, em pose de chefões, enquanto a molecada, que, curiosamente, seria a beneficiada pelas salas, destruía as obras. Iniciava assim o “caos” em Agosto de 2007.

O campo de futebol estava em risco. O estado precisa formar “um homem novo”. Politicamente correcto, a “educação é mais importante que o futebol”. Para os moradores, apesar de precisarem de mais salas de aulas, o bairro não podia ficar sem um campo de futebol:
“Não estamos contra a escola, há espaço para mais salas de aulas e o campo não pode morrer,” defendiam. A ideia era também sustentada por Rui Tadeu, vice-presidente do Costa do Sol, clube que tem um acordo com a escola para a utilização do campo.

“Custa-nos, como agentes desportivos, viver esta situação de destruição de campos. Pelo que se sabe, não há um outro campo no bairro e é aqui onde as crianças aprendem a jogar futebol. Temos que acabar com a mentalidade de destruição de campos”, disse Tadeu citado pelo Notícias de 24 de Agosto de 2007.

Quase dois anos depois as salas foram construídas em redor das que já existiam. Dois anos depois o campo da escola de T-3, que escapou a amputação, continua a ser um espaço para a formação de jovens jogadores.

O pequeno Suleimane de Barros e Euclides Nguenha correm atrás da bola. Constroem ali o sonho de ouvirem aplausos nos grandes estádios e serem verdadeiros ídolos.

Barros não consegue fazer uma separação entre “estudar” e “jogar futebol” como os adultos procuram fazer: “quero jogar a estudar. Gosto de matemática, inglês e do Benfica.” Mas Euclides é pelas posições: “gosto de jogar como médio e como avançado. Gosto de Cristiano Ronaldo por causa das suas fintas.”

A “cena” de construção de salas de aulas no campo de futebol servia claramente como “separação de águas” entre a educação e o desporto. A educação que é a prioridade do governo, dentro dos planos quinquenais, dos objectivos do milénio e dos tantos quês… O desporto é simplesmente o lazer, um meio para chamar turistas (planos para 2010) ou, se preferirmos o plágio: “é o ópio do povo.”

DESPORTO COMO ALTERNATIVA

Para o mister Manuel Suares que foi responsável pela a criação da escola de jogadores de T-3, essa ideia de escolha e o indicar a educação como uma espécie de prioridade sagrada, a única via para o sucesso é prejudicial não só para o indivíduo como também para a própria sociedade.
“O mais importante é não prometer coisas que não vão dar certo. A pessoa pode dizer que estudar é melhor. O miúdo é um talento, mas porque acha que futebol não ajuda não se vai aplicar.”

No entanto, de acordo com Suares “o futebol não ajuda porque nós não fazemos muito para que ele ajude. Nós é que somos culpados.”

O mais importante, segundo Suares é começar a olhar o desporto como uma alternativa a vida porque nem todos têm a oportunidade de ir a escola. Como também nem todos podem ser bons alunos na escola e o desporto pode servir de salvação para essas pessoas.

“Há miúdos que não têm pais. Jogam futebol, singram tornam-se vedetas e ajudam os outros. Aquela família que vai depender dele podia incomodar a sociedade, seria um défice para a força motriz do país. Se essa família tiver problema o país vai se ressentir.” Recorrendo aos números conclui que “cerca de 50% de pessoas que praticam desporto, em particular o futebol, deviam estar na rua porque não têm escolaridade.” Mas o “futebol absorve essas pessoas que ficariam na rua e seriam criminosas. Se tivéssemos muitos clubes nos bairros esses criminosos estariam lá. Muitos clubes estão na capital porque é onde gira dinheiro. Então, muitos saem dos distritos para as cidades ou para a capital e quando as coisas não dão certo frustram-se e optam pelo crime. Se houvesse equilíbrio não viriam todos a Maputo.”

No entanto, para que se consiga uma boa imagem para o desporto, ou para o futebol em particular precisamos construir as nossas referências.

“Nos outros países como o futebol é futuro, muitas crianças são incentivadas a praticar e elas se entregam. Mas isso é feito através de referências. Eles aqui não vêem um jogador com boa vida. Há falta de referências social no nosso futebol. Os nossos futebolistas não têm boa casa e nem têm bons carros por isso que têm de recorrer a escola como única saída. Mas todo o governo e comunidades esclarecidos percebem que o futebol ajuda a desenvolver um país por isso que apostam também no desporto.”

VANTAGEM CANARINHA

Mesmo reconhecendo a importância do futebol ou do desporto no seu todo como “benéfico para a saúde” e um meio para “lubrificar a mente”, como educador, o director da Escola Completa Unidade T-3, Epifânio Balane preocupa-se com o que se perdeu com a manutenção do campo de futebol.

“Ficamos a perder sete salas que seriam mais valia para nós. Estamos a falar de um espaço para 360 alunos.”

Olhando para os benefícios, Balane diz que estes só existem para o Costa do Sol que “está a produzir a custo zero. Disseram (os dirigentes do Costa do Sol) que haveria uma comparticipação, o que não está a acontecer.”

Contudo, para o director daquela escola tudo “tem a ver com a forma como o acordo foi feito. Mas não vejo vantagens para a Escola. Se o Costa do Sol nos desse um apoio para o campo polivalente, não digo que devia pagar alguma coisa, mas sim melhorar, já era bom para a escola.”

A escola de jogadores de T-3 foi criada por Manuel Suares que já vinha trabalhando na área de formação na Zambézia, Manica e Sofala. Quando chegou a Maputo, nos meios de semana o campo andava abandonado. As crianças do bairro faziam grades distâncias para emcontrarem um sítio onde treinassem futebol. “O aproveitamento pedagógico dos miúdos cai quando eles têm de percorrer grandes distâncias a procura de um clube para treinar.”

Foi nessa altura que desenhou um projecto e fez o programa mas teve que esperar um ano para pôr tudo em prática. “Não sabia por onde começar.” A preocupação de mister Manuel não era simplesmente de produzir jogadores de futebol mas sim de produzir homens. Por isso que exigia de si mais do que vontade mas sim tempo e coragem para enfrentar as dificuldades.

“A formação precisa de alguém a tempo inteiro, de alguém que acompanha o desenvolvimento da criança mesmo em termos de educação. Tem que se olhar a partir da base. Os pais nos dão responsabilidades e apoio psicológico. Mas nem todos têm alguma formação por isso que de 15 em 15 dias eu conversava com eles.”

IMPORTÂNCIA SOCIAL DO DESPORTO

A forma como Manuel Suares olhava para a formação de jogadores suportava-se na ideia que supera o simples conceito de “correr é saúde” para olhar o desporto como um instrumento de organização social. Uma ideia que se assemelha a definição da especialista desportiva e monitora de musculação e ginástica, Stélia Xavier, de desporto como “um meio de educação e desenvolvimento de personalidade humana, um factor que imprime nobreza, plenitude e sentido a vida.”

No entanto Stélia, não retira o valor de saúde que o desporto possui, apenas não o restringe a esse item. Diz mesmo que “constitui um meio importante de fortalecimento da saúde e da espiritualidade dos indivíduos e dos povos.”

A importância social do desporto que é defendida por Stélia Xavier baseada no “respeito pelas normas e regras estabelecidas” que também se transladam para “as normas sociais que favorecem a boa comunicação e inteligência” igualmente defendida por Francisco Rodrigues.

Em “Modernidade, disciplina e Futebol: uma análise sociológica da produção social do jogador do futebol no Brasil”, Rodrigues olha para o futebol como “uma instituição disciplinadora e civilizadora”, como Xavier, “dotada de regras e normas.”

No entanto, estas regras disciplinadoras que entram no desporto são, segundo Giddens, Harvey e Laclau – citados por Rodrigues –, características da modernidade. Este período – moderno – é marcado pela “descontinuidade, fragmentação, ruptura e deslocamento do sujeito da estrutura tradicional.”

Com o aparecimento do profissionalismo no desporto a ruptura com o tradicional passa a ser cada vez mais necessário. Não se pede simplesmente que o praticante tenha talento. Exige-se que o desporto passe a ser praticado dentro de uma determinada disciplina. É essa disciplina, como diz Rodrigues, “a principal responsável pela maneira de agir e comportamentos, (que) fabrica um homem necessário a determinadas funções.”

A disciplina, no caso de jogador de futebol começa a ser implementada nas escolas de jogador. E, para mister Manuel, a determinação de funções ou mesmo o determinar se um miúdo pode ou não ser jogador de futebol exige um trabalho de equipa que não se verifica em Moçambique.
“Os clubes devem perceber que o segredo está na formação. Entre as camadas inferiores e seniores há diferença. O ano acaba sem os meninos conhecerem jogadores e treinadores dos seniores. Não há conversa entre estes dois grupos. Tem que haver uma ligação entre o pai, treinador, professor e o clube. Isto está a faltar. O miúdo pode não render não por falta de talento mas porque há alguma coisa a o incomodar. Aqui nós não sabemos se o miúdo pode ou não jogar futebol porque temos falta de pessoas especializadas ou porque não aparecem.”

TALENTO, VIGILÂNCIA E DISCIPLINA

O discurso desportivo recorrente é de que o jogador moçambicano nasce já com talento. Manuel Suares que tem como função lapidar esses diamantes confirma mas insiste num trabalho conjunto.

“A criança moçambicana tem características próprias. Em pouco tempo sabe fazer passe, conduzir e travar a bola, o que falta é acompanhamento. Não pode correr sem botas, sem lanche, sem médico, sem apoio social. Em casa o miúdo tem que ser programado. Tem que comer alguma coisa, tem que fazer TPC. Tem que haver uma ligação entre o pai, treinador, professor e o clube.”

Na verdade, o que Suares está a se referir é o poder da disciplina que é visto como responsável pela produção do indivíduo moderno. Concretamente a disciplina “como uma técnica eficiente de controlo social.”

É exactamente a vigilância que vai moldar o desportista actual e profissional. Ela, a vigilância neste caso, classifica o atleta, seu ritmo de jogo, rendimento e sua capacidade de suportar os esforços nos treinos. E como diz Rodrigues “isso nos permite entender o futebol como instituição disciplinadora.”

Num sentido mais generalista, Norberto Elias via o desporto como “uma dimensão do processo civilizador.” Contudo esse processo começa exactamente com a introdução de normas que “amenizaram a violência controlando o impulso, sublimando desejos e criando condutas em conformidade com as regras,” explica Elias numa citação de Rodrigues.

Sem usar exactamente o termo “civilização” para se referir a importância social do desporto, Stélia Xavier fala claramente de convicções que ajudam na socialização do indivíduo. Segundo ela “o desporto mune o indivíduo de convicções morais, respeito pela conduta de convivência social, qualidades tais que contribuem para dotar o indivíduo do necessário para o seu desenvolvimento dentro da sociedade”. É, para Xavier, um verdadeiro espaço para se adquirir “o conceito de convivência social.”

A especialista em assuntos desportivo subdivide a importância do desporto em social, onde ajuda a respeitar as regras de convivência social; intelectual onde estimula as funções cognitivas pelas situações únicas e irrepetíveis; moral com a formação de valores e de personalidade; saúde onde torna eficiente o funcionamento dos órgãos; benefícios físicos onde se desenvolve habilidades e capacidades físicas; mentais que favorece a rapidez da racionalização e processamento dos estímulos e da informação a nível da produção criativa; e emocional onde se destaca o equilíbrio perante situações de adversidade sentimental e emocional, com relevância para a auto-estima e perseverança para alcançar a meta.

De uma forma resumida, Xavier olha para o desporto como “um factor para a defesa do meio ambiente, do equilíbrio da unidade nacional e da socialização dos homens. Importante factor de afirmação, compensação e de superação nacional.” O que mister Manuel chamaria de “um instrumento para ajudar as crianças a socializarem-se”.

Mas apara que a formação seja eficaz, de acordo com Manuel Suares não basta que clubes, neste caso o Costa do Sol que diz apoiar aquela escola de jogadores, se limite apenas a dar coletes. “É preciso um acompanhamento de todos os envolvidos.”

Dois anos depois, o campo de futebol de T-3 mantém-se. É onde as crianças continuam a aprender a fintar o destino violento e sonham um dia vir a ser craques como Marcelino (guarda-redes da selecção nacional e do Desportivo de Maputo) Faustino, Butana, Dinis e Mulima, alguns dos nomes importantes do nosso futebol que cresceram nas ruas de infulene ou correram naquele campo.

Mas a formação em desporto ainda vai levar seu tempo para entrar nos planos quinquenais.

domingo, 29 de março de 2009

O Efeito Selecção

A selecção nacional de futebol de Moçambique jogou ontem e empatou a zero com a poderosa selecção da Nigéria. Sobre o jogo em si muitos, sempre melhor do que eu, se pronunciaram e se pronunciarão.

Pretendo falar aqui do que designo "efeito selecção", da euforia colectiva que se abateu sobre nós ao longo das últimas semanas cujo ponto alto foi o dia de ontem, da capacidade mobilizadora neste e noutros jogos, da força aglutinadora e, quiçá, unificadora que um jogo da selecção, nesta altura, provoca.

Pelo menos a Cidade e Província de Maputo vestiram-se de gala ontem. Bandeiras por todo o lado, nos chapas, nas motorizadas, nos carros, nos ombros, em T-Shirts enfim, de todas as formas possíveis e imaginárias. Parecia que todos queriam exprimir o seu orgulho pela pátria embalados pelo "efeito selecção".

Foi bonito de ver. A solidariedade e camaradagem mesmo entre gente que nunca se vira antes. Embuidos pelo "efeito selecção" muitos não hesitavam em parar e "recolher" aqueles que, a pé, mas vestidos a rigor, demonstravam estar a caminho de ser o 12º jogador lá nas bandas do Infulene.

Interessante também ver os acenos em todo o lado mesmo em situações em que aquele para quem se acena é nos completamente estranho. Hehehe, e a sessão das bozinadelas em que me vi envolvido, apesar de ensurdecedora foi linda. Naquele momento ficamos, colectivamente, tomados pelo "xikwembo" moçambicano espevitados pelo "efeito selecção" que perspectivando uma alegria com uma possível vitória, já nos criava a alegria só por termos essa esperança.

Aprendi que: a selecção nacional tem uma capacidade de mobilização muito grande. Aprendi também que quando há esperança, quando há crença, espontaneamente (como eu na sessão das bozinas) as pessoas aderem à causa que se apresenta. As pessoas se mobilizam.

Mas ao mesmo tempo que ficava satisfeito com o movimento de ontem, sentia um aperto no coração. É que, até ao próximo grande jogo, dobraremos as bandeiras, as T-shirts e/ou os bonés com os símbolos da República e as demonstrações de patriotismo e voltaremos a mais do mesmo que é exactamente o contrário do que descrevo acima. Só me pergunto porquê...

Também me pergunto se o "efeito selecção" não pode ser replicado em outras situações que nos mobilizem e aglutinem em torno de algo comum onde a euforia (em doses razoáveis), a solidariedade, o companheirismo, a simpatia, a camaradagem etc., estejam sempre presentes.

Bem haja "efeito selecção".