sexta-feira, 8 de junho de 2012

Crédito Agrícola Versus Garantias

Crédito Agrícola Versus Garantias

Júlio S. Mutisse



A reabilitação do regadio de Chókwe e outros investimentos do género anunciados trazem me de volta a reflexão sobre a viabilidade e bancabilidade da nossa agricultura. Como irão os camponeses do Chókwe financiar a produção de arroz? Em tempos, a USAID veio a público propor o uso do título que confere o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra – DUAT – “como garantia bancária para fomentar o crédito agrícola” conjugado com a possibilidade de “as culturas de rendimento e animais de criação, como o gado bovino podem ser usados para o mesmo fim.”

Em minha opinião, mais do que discutir o que pode ser usado como garantia para o acesso ao crédito agrícola, numa fase de aposta na criação/fortalecimento de infraestruturas indispensáveis para a actividade agrícola é necessário que se olhe para a nossa agricultura como um todo e, daí, se produza um diagnóstico realístico que ajude na definição de políticas que façam, de facto, a nossa a gricultura ser a base do nosso desenvolvimento.

O que é que releva na concessão de crédito de qualquer natureza: as garantias ou a viabilidade do negócio? Numa realidade de apenas 2% irrigados de um potencial estimado em 3 milhões de hectares, qual o potencial de risco que os bancos devem considerar na concessão do dito cujo crédito? Será esse negócio viável? Será que o acesso ao crédito e a questão das garantias são os principais problemas que entravam a possibilidade de uma dinâmica maior da nossa agricultura e, com ela, a possibilidade de desenvolvimento do país?

Entendo que, mesmo que a própria terra pudesse ser usada como garantia bancária, no actual contexto em que Moçambique apenas irriga 2% de um potencial estimado em milhões de hectares os bancos não abririam os cordões a bolsa concedendo crédito à agricultura, já que, esta questão do crédito transcende a questão das garantias que possam ser oferecidas para se situar no plano da viabilidade da própria agricultura que, no cenário actual se afigura de grande risco porquanto dependente da natureza: se chove muito = cheias; se não chove seca potenciando incertezas.

Tenho dúvidas que mesmo nos 2% de terra irrigados os bancos dêem crédito. O Chókwè há muito que possui um reluzente regadio que o Governo pretende transformado em Pólo de Desenvolvimento onde, ao que vejo, a banca ainda não deu crédito. É que, numa outra perspectiva, a agricultura não pode ser dissociada de outros fenómenos como tecnologia, insumos, rede de comercialização, mercados, etc. Temos essa cadeia? Não. Morre-se à fome em Mandlakazi enquanto apodrece milho nos celeiros no Niassa por dificuldades de comercialização e/ou escoamento.

Todo este manancial torna os desafios da nossa agricultura bem mais complexos do que as garantias bancárias. Num debate sobre o assunto no blog Ideias Subversivas, Viriato Tembe identificou dois grandes desafios para a agricultura moçambicana: O primeiro é constituído pelos subsídios de que beneficiam as agriculturas dos países concorrentes. Este facto faz com que o custo a que produzem os agricultores moçambicanos não seja competitivo. O segundo desafio é o da ausência de escala. A escala reduz os custos unitários e torna a produção mais barata. Esta ausência de escala é agravada pelo extremo individualismo dos produtores moçambicanos. Cada um aluga o tractor ou a auto-combinada para lavrar ou colher a sua pequena porção de terra. Cada um negoceia as sementes ou os fertilizantes sozinho. Resultado: ficam muito caros e encarecem a produção.

Na mesma senda Jaime Langa, referiu que “o fundamental é propor negócios agrícolas viáveis e vendáveis para os bancos financiarem”. Para Langa, “não há banco no mundo, se quer fazer negócio, que condiciona o financiamento somente a existências de garantias hipotecáveis, em detrimento à viabilidade do negócio”. Para ele, se há alguma coisa que não interessa aos bancos é transformar a sua estrutura financeira em negócio imobiliário para revender os imóveis executados no âmbito das hipotecas de crédito malparado. Ninguém esqueceu a origem da crise mundial financeira. A tratar o assunto crédito olhando somente para as garantias, mesmo se a terra fosse privada, perdia valor, pois, os riscos envolventes numa agricultura doméstica, como é geralmente a nossa, são naturais e as empresas seguradoras não cobrem sinistros de acidentes naturais, sendo assim a terra como garantia deixa de ser útil.

Então, o problema não está na terra ser ou não privada ou no título poder ser transaccionado numa operação desta, mas, isso sim, na viabilidade ou não do negócio da agricultura. É evidente que há quem afirma que o negócio agricultura é sempre viável, afinal somos vinte milhões de almas que têm que se alimentar, deduzindo daí que a agricultura pode ser um bom negócio e até bancável como acontece em todo o mundo. Pode até ser, mas não nos devemos esquecer dos já mencionados subsídios e a influência que têm na competitividade da nossa agricultura. Como alguém disse, “por mais infra-estruturas que ponha, o trigo de Tsangano não há-de competir com o trigo do Canadá, Rússia, EUA, Nova Zelândia, Austrália... e se não é competitivo, as panificadoras vão preferir o trigo estrangeiro por mais que estrebuche o Governo”.

Importa lutar para que os grandes países levem até à última consequência, nos seus próprios países, as lições que fervorosamente nos dão sobre abertura dos mercados. As produções que têm crédito em África, (tabaco, açúcar, algodão) são exploradas por multinacionais e se a abordagem referida pela USAID for adiante, como alguém anotou, o trigo de Tsangano, o milho de Milange e o arroz de Chókwè vão também ser produzidos por multinacionais, após a ruína bancária dos pequenos produtores. Nessa altura, essas produções passariam a ser também viáveis. E, nessa altura também, era possível que os países ricos retirassem os subsídios. Já não fariam falta (pois as suas empresas seriam as proprietárias das terras aqui também).

Os problemas da nossa agricultura tem que ser vistos de modo menos superficial. São mais complexos do que acesso ao crédito. Se não tivermos a coragem de discutir as coisas como elas são, quaisquer abordagens não passarão de conversa para adormecer um boi que se quer garantia bancária. Sabe-se que boi adormecido não ser se produz.