segunda-feira, 27 de abril de 2009

Enrevistas Com História

O Moçambique para Todos alertou-me e conduziu-me para uma entrevista com o título "Quem aplaudiu Salazar tem culpas na descolonização" feita pela RDP a Boaventura S. Santos e transcrita no jornal portugês Diário de Notícias.

Pela sua extensão (tal como o Moçambique para Todos) não a transcrevo aqui, mas recomendo a sua leitura em http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=626067 na medida em que ela traz alguns subsídios que nos podem ajudar a perceber certas coisas, para além da visão, claro, de um político experimentado. Destaco as respostas a 4 perguntas que devem merecer o crivo da nossa ponderação; talvez nos ajudem a conceber diversamente o país:

África encontra-se num processo de grande desenvolvimento económico, mas do ponto de vista político tarda em encontrar um modelo de governação.

Não podemos continuar a querer influenciar as nossas antigas colónias, ensinando-lhes como devem organizar-se. Eles só não aderiram mais cedo à democracia pela razão simples de que, em Moçambique, houve uma guerra durante muitos anos e, em Angola, eram três movimentos em guerra entre si, cada um deles com uma potência imperialista por detrás. Houve a deslocação das populações, houve toda aquela tragédia, houve a destruição das infraestruturas e não apenas. Cidades ficaram destruídas, Nova Lisboa destruída, a Cidade da Beira destruída... Estão agora a levantar a cabeça, estão agora a reorganizar-se. Não podemos julgá-los como se tivessem estado estes 30 anos em paz e liberdade. E, tendo em conta estas décadas de guerra, o facto de terem logo a seguir aderido ao modelo democrático e económico ocidental é de louvar. Estão a fazê-lo com relativo êxito. (destaque e sublinhados meus) Não se salta de uma cultura africana comunitária e autoritária para uma democracia ocidental. As democracias começam por ser formais e passam depois a reais. As nossas democracias ocidentais começaram por não ser perfeitas.

E o que é determinante, do seu ponto de vista, na dificuldade em institucionalizar modelos de relação entre Portugal e África? Há o caso da CPLP, da UCCLA. É culpa portuguesa?

As culpas são sempre repartidas, mais do que nós julgamos. Eu às vezes até digo que nós temos tendência para culpar sempre alguém em especial, porque se a culpa não é concentrada, se não há um bode expiatório, não presta. Se for colectivo, se são todos culpados, então ninguém é culpado. Mas a verdade é que, em relação ao colonialismo e em relação à descolonização, a culpa é mais repartida do que se julga. Todos os indivíduos que estiveram com o Salazar não têm culpa da descolonização e da guerra? Todos os indivíduos que lhe bateram palmas, que lhe deram apoio, não têm? Aqueles que depois disseram que sempre foram o que nunca não tinham sido, não têm culpa nenhuma? É evidente que a culpa é muito mais partilhada do que se julga. Até há uma teoria indiana que diz que todos somos culpados de tudo. Acho um bocado excessivo, mas a verdade é que, no fundo disto, há alguma verdade. Uma vez, um velho amigo, colega meu de Lourenço Marques, avô do Francisco Louçã, um grande resistente, entrou-me pelo escritório adentro e disse-me assim "Eu quero ser preso." "O senhor quer o quê?", disse-lhe eu. "Quero ser preso, você ouviu muito bem." "Mas quer ser preso porquê, homem?", insisti. "Quero ser preso porque se eu estou em liberdade com um regime como este, é porque não fiz aquilo que devia, não resisti aquilo que devia ter resistido".

E a culpa do que se passou depois, deste distanciamento?

Nós não podemos apagar os traumas que a história forma. No momento da descolonização, havia dois traumas. Do lado de África, havia o trauma do ressentimento da era colonial. Houve escravatura, houve trabalho forçado, houve tudo isso, e isso criou um fundo de ressentimento, e esse fundo de ressentimento ainda existe. Nós ainda somos o indivíduo que fez isso. Mas depois os nossos retornados acabaram por ter que se vir embora, perderem os bens, os empregos, afectividades, relações, sonhos, esperanças… e vieram sem nada, com as mãos vazias. Não queria que da parte dessa gente, dos familiares deles, dos amigos deles, não houvesse também um fundo de ressentimento contra a África? É evidente que há um duplo ressentimento, que não é fácil de superar.

África continua a ter um grave problema de repartição social do desenvolvimento. E isto, é evidente que pode ser justificado pelas condições objectivas do passado recente, mas há que fazer alguma coisa para inverter esta lógica. Não é esse o seu entendimento?

É evidente. Eu digo-lhe mais não é só África que está a repartir mal. É o mundo inteiro. Os EUA, que são o país mais rico do mundo, têm 40 milhões de pobres. O problema da repartição da riqueza é o problema número um dos modelos económicos e também dos modelos políticos e sociais. Nunca conseguimos isso. É o problema da equação entre a liberdade e a igualdade. Em todo o caso, os países africanos, tirando as críticas que possam ser dirigidas às cúpulas, têm feito um esforço de nivelamento. Quer dizer, há riqueza esporádica e chocante às vezes, mas depois dessa riqueza há um nivelamento, em baixo, superior a muitos países ocidentais. Não há classes médias. É a riqueza e depois a pobreza. E a pobreza, segundo um certo conceito de igualdade. Esse é o problema número um do mundo.