terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Crítica e Consenso

Crítica e Consenso
Elísio Macamo



Uma parte da blogosfera moçambicana esteve recentemente em efervescência (ver aqui, aqui e aqui). O motivo foi a eterna discussão sobre a nossa relação com o país. Duas posições emergiram dessa discussão. Uma, apologética, defendeu a ideia de que a crítica ao que está mal deve primar pelo patriotismo (ver aqui), enquanto a outra, oposicionista, insistiu na ideia de que o recurso ao patriotismo pode ser um subterfúgio para evitar que se critique o que está mal (ver a discussão nesse mesmo texto). Antes de prosseguir com a reflexão devo fazer um reparo. Ao rotular as duas tendências de “apologética” e “oposicionista” não tenho como intenção tecer um juízo de valor. “Apologético” é um termo muito forte que pode até implicar a ideia de que alguém defende o indefensável. Não é neste sentido que uso esse termo. Uso-o para destacar que essa tendência está próxima da defesa do estado actual das coisas sem, por isso, essa defesa deixe de ter reticências em relação ao que pode ser visto, do interior da comunidade normativa que defende a ordem actual, como estando errado. Da mesma forma, a noção “oposicionista” pode evocar a ideia duma atitude de rejeição total da ordem actual sem compromissos. Aqui também não é nesse sentido que uso a noção. Uso-a para destacar o simples facto de se articular diferença fundamental de opinião em relação a aspectos da ordem actual.


Estes reparos são importantes por duas razões. A primeira é simplesmente de erigir desde já barreiras contra uma discussão semântica. Repito: não há maldade nas designações. O importante é a intenção sistemática e tipológica. A segunda razão é mais substantiva. A intenção desde texto é de procurar identificar uma plataforma comum de discussão que não elimine as naturais diferenças de opinião que existem, nem as legítimas sensibilidades políticas que enformam essas diferenças. Não se trata duma tentativa de estabelecer regras para o debate – embora essa interpretação não seja completamente irrelevante. Trata-se mais dum esforço de mostrar que a defesa bem como a rejeição da ordem vigente não são posições que tornam a conversa impossível. Há, contudo, formas de fazer a defesa ou a rejeição que podem tornar a conversa impossível. Infelizmente, este último aspecto caracteriza em grande medida o debate na esfera pública moçambicana, sobretudo da parte de quem critica. Mostrar isto e lançar um aviso sobre as suas nefastas implicações constituem os principais objectivos da reflexão.

A crítica

Toda a reflexão gira em torno da noção de crítica. Por essa razão, gostaria de fazer mais um reparo em relação à forma como eu a entendo. Para mim a crítica é, na essência, um exercício de introspecção que tem como objectivo justificar o que faço e penso. Quando, por exemplo, peço a um amigo no aparelho de Estado para facilitar o emprego a um familiar próximo (ou a uma amante) o elemento crítico está contido na minha capacidade de conciliar esse pedido com os valores que defendo. O que é mais importante para mim? Ajudar os meus amigos (e amantes) ou violar o espírito das leis do país? Como concilio a ajuda aos amigos com o acto de forçar um amigo a movimentar-se na ilegalidade? Qual é o amigo que me é mais importante? O que precisa de ajuda ou o que eu forço a violar leis? O saudoso Michael Jackson (paz à sua alma nobre) cantava em “Man in the mirror” (o homem no espelho): if you want to make a change / take a look at yourself / and make that change (se quiseres mudar alguma coisa / olha para ti próprio / e faça essa mudança). Tinha razão o génio. Crítica é fundamentalmente isso. É estabelecer a ligação entre torcer o nariz perante alguma coisa (ou achar boa uma determinada coisa) e o que nos permite justificar a nossa atitude. O que significam os outros para nós?


Distância crítica

Preciso de esclarecer mais uma noção, nomeadamente “distância crítica”, que é o que nos permite justificar a nossa atitude. Mas que bicho é este? É a ciência? Não! É Deus? Não! São os Direitos Humanos? Não! É a democracia? Não! Nada disso. O que nos permite fazer isto é a nossa imersão na sociedade em que vivemos. Neste sentido, concordo com um reparo feito por Reflectindo (aqui) quando ele destacava a importância de experiências e percepções pessoais diferentes. Quem passou por campos de reeducação, quem viu as suas opções limitadas pelas exigências da revolução, etc. apreende o mundo à sua volta a partir dessas experiências. Mas isto não implica necessariamente que todo o indivíduo que teve este tipo de vivência vai rejeitar a ordem vigente, nem que essa rejeição seja a única atitude coerente que resta às pessoas. Do mesmo modo, quem viu a sua vida melhorar com a “revolução socialista” (acesso à educação, bolsas no estrangeiro, emprego no aparelho do Estado, etc.) não precisa de reduzir a coerência do seu posicionamento à defesa da ordem vigente. A nossa imersão na sociedade faz de nós indivíduos morais, o que significa que pesa sobre nós a responsabilidade de justificarmos as nossas acções e atitudes. Neste sentido, a distância crítica é o nosso esforço de articularmos o nosso posicionamento moral com a sociedade em que vivemos. Porque é que o resto da sociedade devia ver as coisas como eu as vejo? Que razões legítimas é que alguém teria para rejeitar ou aceitar a ordem vigente vista a partir dos valores que defendo? O que seria preciso alterar nessa ordem para acomodar aquele que rejeita ou salvaguardar os interesses legítimos daquele que defende? Este esforço de reflectir sobre o que nos incomoda (ou agrada) tendo em conta o posicionamento dos outros define a distância crítica e vinca, ao mesmo tempo, o nosso compromisso com a comunidade de que somos membros. Distância crítica é vontade expressa de conversar.


Defesa da verdade

Ora, esta vontade expressa de conversar não é sempre evidente. Há várias razões que concorrem para isso, a mais importante das quais – em minha opinião – é a confusão que temos feito entre distância crítica e defesa da verdade. Muitos de nós pensamos que o único que precisamos para criticarmos é uma referência universal qualquer – digamos, direitos humanos, democracia, transparência, forças do mercado, justiça social, etc. ou pior ainda: esquerda, direita, centro-esquerda, centro-direita, social democracia, etc. – que utilizamos como medida para julgar o que nos incomoda (ou agrada). Muitos nem precisam de verificar se eles próprios se comprometem completamente com essa referência universal; é suficiente brandi-la contra os adversários. Muitos acham ser suficiente dizer que são democratas (ou pela justiça social) e que os seus adversários não são, razão pela qual a sua posição seria necessariamente correcta. O fundamentalismo está à espreita nos cantos menos prováveis! Uma conversa em que os interlocutores querem defender a verdade é defícil, senão mesmo impossível. A conversa só é possível quando os interlocutores estão preparados a questionarem as suas próprias posições. Isto pressupõe a aceitação da ideia de que muita coisa é apenas transitória, fruto de vivências concretas. As mulheres na Suíça começaram a lutar pelo direito de voto em 1886 e só em 1971 lograram os seus intentos. Não foi uma ditadura que lhes negou esse direito, mas sim uma comunidade que se definia (e com legitimidade) como sendo democrática. Não foi necessariamente a adopção de valores democráticos que tornou possível a extensão do voto às mulheres, mas sim interesses de outra natureza cuja realização exigia compromissos de vária ordem. Só na conversa é que se vislumbram os espaços do compromisso. A democracia é incompatível com posições extremas.


A defesa da verdade tem duas manifestações principais. Uma consiste em manipular e a outra em obrigar as pessoas a serem aquilo que nós queremos que elas sejam. A obrigação de pessoas vem da crença na ideia de que só há uma maneira legítima e permamente de organizar a sociedade. No nosso país esta manifestação desembocou no fundamentalismo revoluccionário de alguns sectores da Frelimo que se viram imbuídos da missão de tornar as pessoas felizes (mesmo contra a sua vontade). Ela continua presente em muitos posicionamentos críticos que de vez em quando aparecem na discussão pública. São posicionamentos reaccionários que se opõem à mudança e à ideia de que sejam possíveis outras formas de organização social. A manipulação, por sua vez, consiste em reclamar uma posição de enunciação fora da comunidade, mas que se legitima por falar em nome daquele que não tem voz. Considero esta posição a mais nociva, pois ela não considera a conversa desejável. A sua moral é do tudo ou nada. A ordem vigente bem como todos aqueles que a apoiam têm que ser destruídos. Essa é a vontade do “povo” injustiçado. Qualquer manifestação de protesto (os distúrbios de 1 de setembro, por exemplo) é festejada como o levantamento há muito anunciado do povo contra o sistema. Mas isto não é correcto. Este tipo de interpretação manipula simplesmente o que toma por vontade popular para seus objectivos obscuros de evitar conversar. Um dos seus grandes percursores foi Lénin quando exortava os seus companheiros a pegarem em todo o grãozinho de protesto e insatisfação popular para o investir na destruição da ordem vigente. Muitos dos nossos críticos foram intelectualmente socializados nesta tradição extremamente intransigente.

Não é possível enfatizar suficientemente o lado nocivo desta atitude. Uma das coisas mais deprimentes que acontecem no debate público é este espectáculo niilista do tudo ou nada. Leio regularmente o jornal O País online. Invariávelmente, todos os textos políticos são acompanhados de comentários cuja maioria é dum tom agressivo, mal-educado e de certeza absoluta sobre quem é o culpado de tudo. Simplesmente deprimente, ainda que haja muitas razões para fazer torcer o nariz a qualquer moçambicano sensato. E quem se sentir tentado a pensar que eu esteja a defender uma posição académica pode reflectir no seguinte exemplo. Na segunda década do século passado houve uma fome terrível no sul do país (causada, como sempre, pela seca). Dessa situação surgiu um movimento campesino com o nome de “Murhimi” (agricultor) liderado por um “profeta” que pregava aos seus seguidores uma conduta moral sã, abnegação no trabalho e solidariedade. Melhor sentido de crítica não pode haver! Tratou-se aqui de pessoas que analisaram a sua sociedade e procuraram, na acção comum e constructiva, a saída da situação em que se encontravam. Quantos dos que criticam constantemente hoje em dia procuram, por exemplo, criar redes de agentes económicos que selem códigos de conduta moral contra a corrupção, suborno, etc.? Quantos procuram identificar juízes íntegros e estabelecem com eles espaços morais de conduta íntegre, etc.? Quantos identificam no aparelho de estado funcionários com brio profissional com quem possam fazer a luta por uma burocracia mais transparente, eficiente e virada para o serviço público? Mas crítica é isto, no fundo.


Ligações perigosas


Vou terminar com uma pequena ilustração. Peguemos nas suspeitas que páiram pelo ar segundo as quais alguns moçambicanos estariam envolvidos no narcotráfico e que, através das suas ligações com o poder político, teriam amplo espaço de movimentação. O nosso debate típico pode ser caracterizado da seguinte maneira: os apologistas diriam que se trata duma conspiração externa e exigiriam que todo o verdadeiro patriota cerrasse fileiras contra essas insinuações de fora; os oposicionistas diriam que é mais uma prova da corrupção total do sistema e exigiriam que todo o verdadeiro patriota assumisse posição contra o pessoal que se deixa corromper pela gente da droga. As duas posições são perfeitamente legítimas, mas no espírito do debate são insuficientes. Cada uma delas encerra elementos críticos. O apologista (acha que) está a defender a soberania nacional e, por isso, insiste numa ideia muito específica do patriotismo. O oposicionista (acha que) está a defender a moralidade na acção política e, por isso, insiste noutra ideia específica do patriotismo. Se cada um dos intervenientes nesta discussão insistir na sua posição como algo sagrado, o debate não será possível. Cada um vai simplesmente defender a sua posição intransigente.


Suponhamos, porém, que cada um deles faça o exercício de introspecção moral que a crítica exige. Aí as coisas mudam. O que receia pela soberania pode perguntar a si próprio porque ela é assim tão importante para si. Se calhar é porque ele acha que Moçambique precisa de estar sempre em condições de tomar as suas decisões sem intereferências de fora. Muito bem, mas ele pode continuar e perguntar se uma possível ligação com o mundo obscuro do narcotráfico não teria, a longo prazo, os mesmos efeitos. A distância crítica pode obrigá-lo a ir mais longe questionando a sustentabilidade dos benefícios que se tiram desse negócio sujo e, acima de tudo, interrogando-se como ele se sentiria se os beneficiários fossem os seus actuais adversários políticos. Que tipo de contexto institucional ele acharia justo para que mesmo na eventualidade de ele estar fora do poder – e os actuais adversários políticos manterem esse tipo de ligações – ele próprio não ficasse prejudicado? A resposta íntegra a estas questões vai criar o espaço de conversa com os outros. Igualmente, aquele que receia pela moral política pode perguntar porque ela é assim tão importante para si. Pode ser que a resposta seja de que a moral na acção política precisa de ser preservada para que o povo continue (ou comece) a determinar a política que se faz (ou devia fazer) em seu nome. Aí ele pode perguntar o que torna os interesses, digamos dos camponeses, moralmente superiores aos dos homens da droga. A resposta, parecendo que não, não me parece óbvia. Ele pode chegar à conclusão de que precisa de reflectir sobre os arranjos institucionais que o sistema político precisa para que a articulação de interesses particulares não seja à custa de outros interesses da sociedade. A resposta a estas questões todas conduz também à criação de espaço para a conversa.


O consenso


Uma crítica formulada e entendida desta maneira pode conduzir ao consenso. O consenso não significa comunhão de opinião, mas sim vontade de compromisso. Essa vontade só pode surgir duma atitude crítica. Este é, no final de todas as contas, o significado profundo da democracia. Nenhuma democracia nasceu com tudo já feito: instituições, democratas e estabilidade. Democracia é algo sobre a qual se trabalha e, no processo, se constitui. Este é também o significado da procura de soluções locais. Não há democracia africana e democracia ocidental. Há respostas concretas e locais para problemas históricos locais que só se podem tornar visíveis a partir da vontade de discutir abertamente as razões que temos para fazermos o que fazemos. A democracia é o resultado da distância crítica.