quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Os Nossos Compatriotas Zangados (3) As Vítimas

Depois de Gonçalves Matsinhe ter publicado o primeiro e o segundo números desta série intitulada "os nossos compatriotas zangados," (aqui e aqui) prossigo deste lado publicando o terceiro número sobre "As Vítimas." Chamo este assunto para aqui depois que li e comentei o post do meu amigo José aqui.

Os Nossos Compatriotas Zangados (3) As Vítimas

Por E. Macamo

Solenes e desolados/os montes emergem/mais graves e escuros. Continuo fascinado com Fernando Couto. Neste verso ele fala da neblina, aliás, ele fala dos montes que ficam visíveis quando a neblina se vai. Um véu de neblina/encobriu o vale, todo o vale:/ilusão de água e silêncio/lugar de engano. É neste contexto que os montes emergem mais graves e escuros. Todo o vale é morto/e nem as vozes ecoam/em descanso, os pássaros/resignados esperam/para retomar voos e cantos. Aqui Fernando Couto engana-se. Os pássaros não estão resignados, nem estão à espera para retomarem voos e cantos. Quando os montes emergem mais graves e escuros, os nossos compatriotas zangados gostariam de não mais retomarem voos e cantos que sejam. Eles gostariam que fosse verdade a sua convicção de que estão a lidar com gente má preste a fazer o pior.

Este é talvez o aspecto mais deprimente da constituição política dos nossos compatriotas zangados. Eles usufruem da liberdade de expressão que vamos aprendendo a praticar no país, apesar de toda uma tradição histórica autoritária fomentada por alguns desses compatriotas zangados, e mesmo assim insistem que essa liberdade é uma ilusão. Para falarem livremente precisam sempre de levantar o espectro de um país onde a distância crítica em relação aos detentores do poder é paga com a vida. Quando eles falam, aliás, para eles poderem falar precisam de preparar o terreno. E o terreno que preparam é um terreno cheio de cadáveres de homens e mulheres íntegros que foram tombando assim que abriram a boca para falar a verdade. Se alguém, à excepção deles, claro, critica e mesmo assim não lhe acontece nada, não corrigem as suas convicções. Acham que essa pessoa deve estar feita com o poder. Para falar de forma impune é porque teve a autorização do poder.

Assalta-se a redacção de um jornal qualquer, grita-se logo “querem nos silenciar!” como se fosse realmente possível, nos tempos de tecnologias de informação que vivemos actualmente, silenciar seja quem for. Se ultrapassam os limites da liberdade de expressão e o poder judicial se coloca na sua peugada, gritam até ficar roucos que estão a ser perseguidos. Exclamam, com razão – diga-se de passagem – que os nossos tribunais só funcionam quando são eles. Mas, claro. Cada regime tem as suas prioridades. Não se preocupam em verificar os detalhes concretos da lei para perceberem porque a Procuradoria Geral da República levanta esta ou aquela acusação. É logo socorro! Se não são convidados a irem falar mal do governo em algum órgão público de informação, ficam amuados e começam a desfiar as suas teorias de conspiração. Se alguém morre e estava ligado ao poder, especulam quem estará por detrás da sua morte. O que sabia ele, indagam-se.

Não tenhamos ilusões. O nosso país é muito violento. O crime faz das suas. A pobreza exacta também as suas vítimas. As doenças, as dificuldades com a técnica e a civilização fazem também das suas. Há também gente muito rancorosa em alguns dos nossos órgãos de soberania. Na polícia, no exército, nos serviços de segurança do estado. Sobretudo a nossa polícia continua com enormes dificuldades de interiorizar que a sua função é de defender o povo, que a segurança do povo está acima da necessidade de prender criminosos. Nenhuma vida humana pode ser sacrificada só porque se estava na peugada de criminosos perigosos. Há gente inocente que vai morrendo por aí em resultado deste mau jeito. E é grave que os agentes responsáveis por isso não sejam trazidos à justiça. Os sindicatos da droga e suas possíveis ligações com gente menos idónea nas hostes do poder não são feitos de gente pacífica. É gente violenta e sem escrúpulos. Pode matar. E mata.

Portanto, morre-se no país. Mas não se morre por criticar. Nem mesmo quando a crítica é mal formulada, como é quase sempre quando se trata dos nossos compatriotas zangados, se coloca a vida em perigo. Quando muito, perdem-se oportunidades. E isso é normal em todo o mundo. O nosso país não ficará mais tolerante e democrático no dia em que o governo do dia vai promover os críticos, organizar as suas festas de aniversário e bodas de prata. De resto, se um governo fizesse isso os próprios críticos não gostariam. Diriam que estão a ser comprados como, aliás, têm dito quando alguém que eles consideravam crítico “assume funções” como se diz entre nós.

Enfim, é difícil ganhar neste ambiente envenenado. Malditos se eles matam; malditos se eles não matam. Mas como diz Fernando Couto: É Outono e o sol há-de voltar. Sim, é a liberdade de expressão, mas a censura há-de voltar se mais não fosse para dar alegria aos nossos compatriotas zangados.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Machado Da Graça, Um Messias Contra Os Seus Jovens Discípulos

Fechamos o ano debatendo um texto do Tadeu Phiri aqui (um debate que será retomado no sentido sugerido pelos 3 últimos comentários). Para desejar "boas entradas" a 2010 na melhor que o Phiri de novo com novo tema que deve merecer nosso crivo aqui.

Porque é que, com o tempo, as vontades mudam tão radicalmente?

Machado Da Graça, Um Messias Contra Os Seus Jovens Discípulos

Tadeu Phiri

Muitos de nós crescemos a ouvir e a ler as arengas patrióticas de Machado da Graça. Na verdade, este digno jornalista foi um dos mais entusiastas arautos da Revolução, do Homem Novo e da Ditadura do Proletariado. Lê-lo e ouvi-lo a defender estes ideais era um regalo.

Lembro-me, por exemplo, da crónica triste que escreveu aquando da aprovação da nova constituição multipartidária dizendo “para muitos deputados que acabavam de aprovar o novo texto constitucional, como para mim, na modesta cabine da Rádio Moçambique, aquilo que acabava de ser aprovado na sala era, por um lado, o desfazer de um sonho de juventude, a falência, pelo menos para já, de um projecto lindo...” (Crónica O Virar da página, de 30 de Outubro de 1990).

Em minha casa, todas as sextas-feiras depois do noticiário das 12.30 horas, o meu pai, que era um dos seus grandes admiradores, ordenava um silencio quase sacramental para ouvirmos em família este porta-voz oficioso a ler, com a sua voz vibrante e embargada, a sua crónica semanal que era uma verdadeira convocatória ao patriotismo, aos princípios revolucionários e ao mundo novo.

O Machado da Graça desse período quase pré-histórico não contemporizava com qualquer forma de ingerência nos assuntos internos da nossa terra. Os seus textos eram extremamente severos contra todas as tentativas do imperialismo e dos saudosistas do colonial-fascismo de darem lições ao nosso povo e ao novo Estado que estava então em alvorada. A sua severidade era extensiva aos agentes internos infiltrados nas nossas fileiras.

A maneira como se posicionou aquando da apresentação dos primeiros Partidos políticos é, a este respeito, paradigmática. Foi um dos que mais contribuiu para instilar na opinião pública a ideia de que esses Partidos eram o resultado de gente frustrada, ambiciosa e demente. As crónicas que escreveu sobre o Palmo (Um futuro originário, de Outubro de 1990 e Um Palmo no mau caminho, de 22 de Fevereiro de 1991), sobre a Unamo, sobre o COINMO e sobre o MONAMO (O gatinhar da democracia, de 14 de Maio de 1991 e Filme de terror, de 17 de Maio de 1991) podem ter contribuído imenso para a falência precoce dessas experiências políticas. Sobre Máximo Dias disse “...Mas onde os lapsos de Máximo Dias chegaram a um ponto mais inquietante foi quando afirmou, por duas vezes seguidas, que estava aqui, em Portugal. Lapso que atribuiu a uma estadia prolongada naquele país europeu mas que, devidamente analisado por um psicólogo, talvez revelasse um íntimo desejo oculto”. Se se tiver presente o contexto, e se nos recordarmos que Machado da Graça era uma voz sonante do jornalismo da época falando de uma elevada cátedra que era a Rádio Moçambique, entender-se-á que os seus posicionamentos determinaram, em grande parte, a percepção pública em relação ao novo fenómeno que era o multipartidarismo.

Tem sido pois com espanto e fascínio que tenho acompanhado o alinhamento actual deste prestigiado jornalista com fenómenos que outrora combateu com denodo. Num dos seus últimos escritos revolta-se contra jovens que cresceram a ouvi-lo e que hoje se posicionam contra as tentativas do chamado G-19 de humilhar o nosso país. Jovens que não concordam que um qualquer Todd Chapman esteja mais interessado em combater a miséria que afecta o nosso país do que os próprios moçambicanos. Jovens que se opõem a qualquer forma de relacionamento baseada em ultimatos do género “se o governo não melhora os indicadores de redução da pobreza até Março, cortamos a ajuda. Se o governo não altera a lei eleitoral até Março, cortamos a ajuda. Se o governo não melhora os indicadores de luta contra a corrupção até Março, cortamos a ajuda.” Machado da Graça designa de patrioteiros esses jovens que cresceram a ouvi-lo a ler proclamas patrióticas.

O digno jornalista parece acreditar que os africanos são incapazes de construir o roteiro do seu próprio desenvolvimento. Numa atitude salpicada de laivos de racismo ele aparece a postular que esses jovens moçambicanos preferem chafurdar na sujeira que lhes é típica do que “tomarem o banho que, de fora, lhes querem impor”. Será que acredita, este jornalista de referência, que os que nos querem dar o tal banho limparam as suas próprias porcarias em dois tempos? Acredita este decano do jornalismo moçambicano que esses países que hoje nos querem dar lições eliminaram a corrupção nos seus países e alcançaram os actuais níveis de boa governação em dois tempos?

Quanto tempo e quanto dinheiro esses países investiram no seu sistema de justiça? Moçambique teve o mesmo tempo e os mesmos recursos para formar juristas (que há 35 anos não existiam) e colocá-los em todos os seus distritos e postos administrativos? Quanto tempo e que recursos esses países despenderam para estabelecer as fundações do seu eficiente aparelho de estado? Não se dá conta o emérito jornalista que no dia que tivermos boa governação como a do G-19 já seremos tão desenvolvidos como eles? Não se dá conta que no dia que tivermos um aparelho de justiça tão rápido e eficiente como o do G-19 a investigar e a punir fraudes financeiras seremos já um país tão desenvolvido como eles. O que estamos a dizer é que as coisas que os actuais amigos de Machado da Graça querem que Moçambique resolva “até Março” eles levaram séculos a construir.

E não se trata de que nos indignemos “quando eles (a tal comunidade internacional) nos pedem contas sobre como esse dinheiro é gasto...” como se alega por aí. Somos favoráveis a que se façam auditorias regulares para se aferir se os procedimentos financeiros e de procurenment PREVIAMENTE acordados estão a ser cumpridos. Para aferir se os objectivos e indicadores de desenvolvimento PREVIAMENTE estabelecidos estão a ser cumpridos. Opomo-nos, isso sim, a que um qualquer encarregado de negócios sonhe com um vago e confuso princípio de inclusão e, no dia seguinte, queira impô-lo, na forma de chantagem, ao nosso Governo. Opomo-nos a que cada diplomata estabeleça a sua própria definição de boa governação, as suas percepções sobre a corrupção no país, o seu conceito unilateral de democracia e, na base dessas conclusões subjectivas, se queira humilhar todo um país. Na verdade, os critérios de avaliação da eficácia da cooperação DEVEM ser acordados previamente por ambas as partes. Não devem resultar de improvisações, sonhos ou alucinações duma das partes.

Deixem o nosso país seguir o seu próprio caminho para o progresso. O Governo que está a ser chantageado no fim do seu mandato aprofundou a visão deste país para o desenvolvimento. Uma das vias é a que causa úlceras gástricas ao G-19 e ao ilustre jornalista: os 7 milhões. O jornalista outrora admirado por meu pai diz num dos seus últimos textos que os G-19 estão “preocupados por o seu dinheiro estar a servir para reforçar a presença da Frelimo nos distritos, através dos chamados 7 milhões... ” Este grande jornalista ignora o facto de que esta iniciativa deu a todos os nossos distritos recursos para financiarem a produção de mais comida, gerarem mais postos de trabalho e criou a facilidade para que indivíduos de extractos sociais humildes, que de outro modo não teriam como financiar as suas iniciativas económicas, tivessem a possibilidade de serem actores reais na vida económica do país. Mais do que ultimatos, as bases para a boa governação e para a redução substancial da pobreza provirão da multiplicação de iniciativas como esta.

Porque é que Machado da Graça e outros como ele passaram de inimigos da tutelagem estrangeira a amigos de banhos dados aos africanos por potências estrangeiras? Esta é uma questão de difícil resposta. Uma das chaves de resposta é-nos dada pelo próprio quando sugere que eu e outros que nos posicionamos contra a tutelagem externa fazemo-lo para “mostrar serviço para que as manjedouras continuem cheias com os saborosos restos do banquete dos poderosos”. Podemos presumir desta clave que nos é dada pelo prestigiado jornalista, que nos tempos em que se assumia como arauto da moçambicanidade as manjedouras andavam cheias “com saborosos restos do banquete dos poderosos”. Deixaram de estar cheias ou ele e outros seus semelhantes passaram a querer mais? Confesso que não sei. Ele e os seus amigos poderiam elucidar-nos. Uma outra explicação para a mudança pode radicar na probabilidade de Machado da Graça e seus iguais terem percebido que o estar contra compensa. Ele e os seus iguais podem ter percebido que, como grupo com características específicas em termos de trajectória política e social, poderiam ter melhores manjedouras se virassem as casacas. Só que ficaram muito amargos e rancorosos.

Os tempos, porém, mudaram. Muitos de nós que hoje nos posicionamos no debate público estamos na academia, estamos na consultoria, estamos nas organizações internacionais, estamos na magistratura. As regras da nossa progressão estão claramente estatuídas. Podemos prever com clareza o que precisamos de fazer para chegarmos a catedráticos ou a juízes de primeira. Não há como nos frustrarmos e ficarmos amargos. E, sobretudo, vivemos do nosso esforço e não de oportunismos de circunstância determinados por manjedouras como a do G-19, para as quais o referido jornalista está agora com os olhos virados.

Adenda: "Os Nossos Compatriotas Zangados" foi o título de uma série que, Elísio Macamo fez publicar no Jornal "Notícias" em tempos que, pelo seu interesse para o debate que temos tido aqui, Gonçalves Matsinhe publica no seu blog AQUI, depois que o primeiro número dessa série foi publicado também AQUI.

Adenda 2: O José põe "Machado da Graça Na Berlinda" aqui.

Adenda 3: Matsinhe postou o nº 2 da saga dos nossos compatriotas zangados aqui