Quando o Xico Nhoca Toma o Poder
Júlio Mutisse
Julio.mutisse@ gmail.com
Numa fase da nossa história pós independência popularizou-se o Xico Nhoca. Nas minhas memórias do “Jornal do Povo” da esquina de casa, dos cartoons da revista “Tempo” ainda encontro essa figura que representava tudo aquilo que se combatia. Se no auge dos primeiros 6/7 anos de Moçambique independente houvessem “Dumba-nengues” desorganizados como hoje, entrariam, de certeza, no conceito xiconhoquista de então.
Um dia alguém escreveu que “no meu país já não há Xico Nhoca.” Se já houve momentos em que era tentado a concordar, hoje sou tentado a descordar. O Xico Nhoca tomou o poder. Se num novo contexto político, histórico e social distinto dos primeiros anos da independência há males que devemos combater e que poderiam representar um novo Xico Nhoca dos novos tempos, a forma como lidamos com esses males, representa a capitulação do Estado, representa a sua chegada ao poder às custas de um Estado incapaz de aplicar as leis e regulamentos que aprova para as mais diversas situações, titubeante no tratamento de determinadas questões e inconsequente na forma como, de tempos em tempos, lida com determinadas matérias.
Há dúvidas de que Xico Nhoca tomou o poder? De que é que valem o poder conferido a David Simango, as leis e posturas que regulam o comércio no geral e em Maputo em particular, se ao mais pequeno sinal de pressão dos que actuam à margem desses instrumentos legais os poderes públicos recuam? A desordem, que devia ser combatida, ganhou em prejuízo da ordem que devia ser garantida por quem, neste caso, foi eleito para, entre outras coisas, regular o comércio no perimetro autárquico de Maputo, garantindo que este seja exercido de forma ordeira.
Não se trata de defender pura e simplesmente a retirada dos vendedores informais das ruas. Longe disso; trata-se, antes, de defender a necessidade de o município, como sugere Jeremias Langa, compreender o comércio informal e a sua dimensão e, a partir daí, encontrar formas de pôr ordem numa actividade excessivamente anarquizada na cidade de Maputo e não só. E se chegamos a este extremo é porque, ao longo dos anos, se foi licenciando de forma inconsequente, sem avaliar os impactos dos tipos de estabelecimentos que foram sendo licenciados em diferentes locais, ao mesmo tempo que se foi permissivo quando, em escala menor, determinados entrepostos foram se formando por esta cidade fora. E chegamos onde chegamos.
O Xico Nhoca está no poder. Quando vendedores abandonam os mercados para ocupar os passeios nas nossas cidades e, sem pudores, as autoridades municipais um pouco por todo o país cobram taxas, é o triunfo da desordem e sua legitimação. O Xico é que manda.
O Xico Nhoca tomou o poder. Da internet, passando por jornais, dísticos nas paredes ou em muitas muitas árvores nas nossas cidades, publicita-se a venda de terra em pleno desrespeito dos desígnios da Constituição da República, da Lei de Terras e seus regulamentos, das posturas municipais que regulam o acesso à terra urbana etc., que preconizam que a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida e, por força desses negócios que, não poucas vezes, envolvem gente que os devia impedir, resultam conflitos que podiam ser evitados com acções concretas que fragilizassem o Xico Nhoca evitando que, mesmo daí, se notasse que este chegou ao poder. Ao poder de Xico Nhoca negociante, tem que se seguir acções de correcção que tanto podem implicar a concessão de um espaço a uma das partes (premeando a ilegalidade) ou, acções drásticas como demolições por vezes mal compreendidas não só pelos visados como pela comunidade no geral.
O xiconhoquismo está em alta, tão é alta que até os sindicatos se dão ao luxo de ameaçar o Estado e os poderes instituidos. Quando uma uma organização representativa dos trabalhadores como a Confederação dos Sindicatos Independentes e Livres de Moçambique representada por Jeremias Timane, para além de mostrar preocupação com o acórdão do Conselho Constitucional que considera inconstitucional o artigo 184 da Lei do Trabalho que versa sobre a obrigatoriedade da mediação prévia dos conflitos laborais, ameaça que “caso não seja revogada a decisão do Constitucional” os sindicatos poderão convocar manifestações já que, segundo ele têm, “capacidade de mobilizar todos os trabalhadores para marcharem na rua” é um mau sinal. É o Xico, o Nhoca, a tentar expelir o seu veneno para impôr o anormal, pontapeando todos os princípios de um Estado de Direito que um representante sindical deveria defender.
A lei não pode passar de letra morta; se à menor pressão a pontapeamos para um canto, estamos a dar o sinal de fraqueza do Estado, estamos a dinamitar um dos pilares de uma sociedade que se preze (o direito/a lei/ a ordem) potenciando a anarquia. Todos temos que assumir a nossa responsabibilidade no enforcement da lei e, através dela, na criação da harmonia social que todos desejamos e que, de outra forma, é impossível.
Repito, no caso do comércio informal em Maputo e nas demais cidades moçambicanas, não se trata de “expulsar” os informais pura e simplesmente; há toda a necessidade de conhecer o fenómeno e ordenar convenientemente as actividades comerciais de modo a acabar com a desordem que impera. “Deixem as ruas limpas”… não é isso que espero do edil da capital do meu país mergulhada num caos de informalidade; espero medidas que, não vulnerabilizando as pessoas envolvidas no comércio informal retirando-lhes fontes de renda, ordenem o comércio actualmente informal, eliminando os constrangimentos actuais, como tão bem se fez com os vendedores de flores e artesenato em tempos.
A revista “Tempo” de 12 de Setembro de 1976 escrevia que o “departamento de Informaçao e Propaganda da Frelimo criou uma caricatura a que chamou XICONHOCA. Esta caricatura representa todo e qualquer inimigo interno.” A desordem, um inimigo interno de qualquer sociedade, venceu entre nós. Com muita pena minha. E, infelizmente, nem se trata de falta de regulamentação pois, em minha opinião, temos sido bons legisladores; trata-se de capacidade de fazer valer essas leis.
Capitulamos.