Os debates que correm na blogosfera e, sobretudo, os acontecimentos do dia 5 de Fevereiro, trouxeram (como nunca) uma maior abordagem sobre cidadania. Muitos se têm referido a necessidade de, em Moçambique, despertarmos para o exercício de uma “Cidadania consciente” que, quanto a mim, passa fundamentalmente pelo conhecimento dos nossos direitos que servirão de guias no seu exercício e na participação política que devemos ter. Mas afinal, o que é cidadania?
“A cidadania expressa um conjunto de direitos que dão à pessoa a possibilidade de participar activamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social” (DALLARI, Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. p.14).
Um dos direitos que a Constituição da República de Moçambique nos confere é o da manifestação nos termos da lei, conforme dispõe o artigo 51. Parece consensual a condenação da violência cometida pelos manifestantes do 5 de Fevereiro. Tirando a violência encontraríamos certamente o exercício da tal cidadania através das manifestações contra a subida do chapa, num exercício similar ao que é feito em várias partes do mundo.
No contexto moçambicano, e não só, parece me que reduzimos a cidadania à votação e ao pagamento de impostos. E depois disso? Não haverá mais nada que o CIDADÃO deva fazer? Serão a votação e o pagamento de impostos as únicas formas que nós, cidadãos moçambicanos, temos de participar activamente da vida e do governo do nosso povo?
A herança colonial e a visão revolucionária dos primeiros anos de independência podem constituir barreiras culturais e históricas para o sentido de cidadania que devemos ter no contexto de uma democracia como a que pretendemos construir. Um dos reflexos dessa barreira é o nosso distanciamento em relação a coisa pública ou o alheamento quase completo em relação às políticas que, em nosso nome, os sucessivos governos da República de Moçambique tem adoptado.
Como diz Elísio Macamo “o governo tem, em princípio, um mandato da sociedade para fazer coisas em nome dessa sociedade.” Em minha opinião, e em face desta premissa, o que a sociedade deve fazer permanentemente, é fiscalizar como, em cada momento, o governo cumpre esse seu desígnio. Os direitos que temos como cidadãos não são privilégios e exigi-los não é ser mal criado e inoportuno. A cidadania é, portanto, o conjunto dos direitos políticos de que goza um indivíduo e que lhe permitem intervir na direcção dos negócios públicos do Estado.
Podemos muitas vezes compreender os direitos como uma concessão, um favor de quem está em cima para os que estão em baixo. Contudo, a cidadania não nos é dada, ela é construída e conquistada a partir da nossa capacidade de organização, participação e intervenção social.
A cidadania não surge do nada; nem a consagração legal de certos direitos deve ser tida como a realização desses direitos. É necessário que o cidadão participe, seja activo, faça valer os seus direitos. Construir cidadania é também construir novas relações e consciências. A cidadania é algo que se aprende não só com os livros, mas, também, com a convivência, na vida social e pública.
Ser cidadão é respeitar e participar das decisões da sociedade para melhorar suas vidas e a de outras pessoas. A educação é fundamental para a construção do ideal de cidadania e para o despertar de consciências sobre a coisa pública. É imperioso despertar a cidadania divulgando-a através de instituições de ensino e meios de comunicação para o bem-estar e desenvolvimento da nação.
Será exercitar a nossa cidadania assumir que somos parte do problema e que algumas soluções que esperamos sempre dos outros (normalmente o Governo, os Municípios ou outros entes públicos) podem brotar de nós. Assumirmos isso far-nos-á compreender que o desejo de vivermos, por exemplo, numa cidade limpa passa por não jogarmos papeis, cascas de banana, latas ou garrafas de cerveja no chão e em qualquer sítio, despertará a necessidade de gerirmos o lixo produzimos, inibir-nos-á de vandalizar infra-estruturas públicas como telefones, bocas-de-incêndio nos nossos prédios etc.
Será igualmente exercitar a nossa cidadania quando, fazendo as coisas correctamente, conscientemente interpelarmos o Estado no sentido deste cumprir com a sua parte fornecendo mais e melhores serviços públicos. Nestes termos, é exercitar a cidadania interpelar o município no sentido de compreender, para além da parte que nos toca (o tal deitar lixo no chão de que falava), porquê é que a cidade não anda quando milhões de munícipes pagam a taxa de lixo em cada factura de energia. É exercitar a cidadania exigir um melhor serviço de radiodifusão tendo em conta as taxas que pagamos.
3 comentários:
caro júlio, este tipo de discussão é muito importante. há pouca clareza à volta da nossa relação com o país e com os outros que o partilham (ou deviam) connosco. penso que a primeira questão que podemos colocar é de saber se já fizemos tudo para que um número maior de moçambicanos seja cidadã. creio que não e sobre isso teremos que reflectir profundamente. aí vamos levantar problemas ligados à maneira como a própria ideia de cidadania entra na concepção do político no nosso contexto. constataremos que noutros quadrantes a cidadania tem uma história e que o seu significado é em relação à essa história. para o nosso caso, o severino ngoenha já sugeriu a ideia de um "paradigma libertário" para dar sentido à nossa concepção de cidadania. ainda não estamos a discutir isto. não me alongo. o que pensamos sobre a cidadania tem que estar alicerçado na nossa experiência histórica e no tipo de sociedade que somos ou estamos a construir (ou simplesmente está a emergir entre nós). que ideia de sociedade enforma a nossa concepção do papel e lugar dos outros nos espaços que também ocupamos? que tipo de responsabilidade, mas também que tipo de direitos estão ligados à nossa condição de membros da comunidade política que é moçambique? tenho notado contradições em algumas intervenções críticas que sugerem, para mim, a ideia de que estas coisas básicas não estão claras para muitos de nós. houve uma discussão recente no blogue do bayano vally sobre a ausência de notícias sobre as manifestações nos órgãos de informação controlados pelo estado. muitos indignaram-se com razão, mas fundamentaram a sua indignação com recurso ao interesse público, limitando dessa maneira o alcance da sua crítica. o comunicado do misa repetiu este argumento problemático e fraco. o governo, conforme defendi nessa discussão, poderia muito bem impedir a notícia com base também no interesse público. e tê-lo-ia feito com razão. o que estava em causa para mim, contudo, era algo muito mais importante e constitutivo da cidadania, nomeadamente o direito à informação que nos poderia levar a fundamentar melhor a não-interferência do governo nesses orgãos. o "interesse público" impõe a visão do mais forte, enquanto que o direito à informação define a responsabilidade do estado na provisão (ou na não criação de obstáculos) desse direito. a sensibilidade para estes detalhes vem de uma apreciação cuidada do que está em causa quando falamos de cidadania no nosso contexto. estão em causa direitos, liberdades e responsabilidades? de que maneira? portanto, júlio, estás de parabéns por trazeres este assunto à nossa atenção.
O Mutisse na sua abordagem destaca os direitos como a face mais visível da cidadania na medida em que é "pelo conhecimento dos nossos direitos que servirão de guias no seu exercício e na participação política que devemos ter."
Antes de chegar ao comentário do Prof. Macamo também me questionava se, ao falar de cidadania, estamos APENAS a falar de direitos. Entendo que quando falamos de cidadania estão em causa direitos, deveres e liberdades.
Falar só nos direitos no contexto do post sobre a Cidadania que comentamos, é uma forma de (como diz o Elísio Macamo, no texto em que Mutisse o cita a partir do seu blog) pensarmos que não somos parte do problema. Se temos direito só temos que EXIGIR. É que se alguém tem direito, esse sempre é exigível perante outrem, que, por sua vez, tem o correlativo dever.
Então ao falarmos de Cidadania, para além do direito de EXIGIR temos que falar de DEVERES. O que é que nós como cidadãos temos que DAR à sociedade.
Temos que falar de LIBERDADE que o cidadão deve gozar com responsabilidade.
Enfim é um tema apaixonante. Infelizmente há muita coisa que TOLDA a nossa capacidade de EXERCER esta cidadania consciente. De pagarmos impostos cientes de que estamos a dar a nossa comparticipação para a materialização dos desígnios da sociedade organizada em Estado; De fiscalizar a forma como os nossos empregados governantes que tomam as decisões sobre a aplicação desses impostos (por mais que representem pouco no bolo que eles tem gerir. É que até os empréstimos feitos a parceiros vários são feitos em nosso nome) o fazem e, conscientemente mostrarmos as fraquezas e virtudes dessas decisões usando as LIBERDADES de que gozamos como cidadãos: Manifestação, Associação, Participação política etc.
Meus irmãos. Obrigado por cá virem.
Elísio, o seu comentário é interessante.As questões colocadas são igualmente importantes.
O que está em causa quando falamos de cidadania no nosso contexto. estão em causa direitos, liberdades e responsabilidades?
Na minha óptica essas três componentes estão presentes quando falamos em cidadania: (i) deveres/responsabilidades consubstanciados na nossa acção no que o Matsinhe chama de "comparticipação para a materialização dos desígnios da sociedade organizada em Estado", (ii) no conjunto de liberdades de que gozamos na medida que permitem a emergência de diversas expressões da mais variada ordem, (iii) direitos na medida que o seu conhecimento vai "acender as luzes" da necessidade de exigir a sua observãncia e a sua não limitação. Essa exigência pode ser feita usando, por exemplo, a liberdade concedida de nos manifestarmos desde que cumpramos a lei para o efeito.
Matsinhe, destaquei os direitos de facto (a isso atesta o 1º parágrafo do meu post) mas encontramos estes elementos todos da leitura do texto.
Voltarei ao assunto em breve
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